quinta-feira, 5 de junho de 2008

Poça mágica


Tinha a mulher o corpo dividido. Um braço, uma perna, o ventre, o pescoço e os ouvidos já haviam entendido que aquele homem não mais existia. Outro braço, outra perna, os ombros, a boca e os olhos insistiam em desenhar sua silhueta entre pensamentos contumazes. Andar pelas ruas não era tarefa fácil. Vez ou outra, a mulher tropeçava, desajeitada, em dúvidas e discórdias interiores. Caía. Voltava a ficar de pé, envergonhada e febril. Caía novamente e, cansada, colocava os cotovelos sobre os joelhos, sentada no meio-fio, reflexionando sobre sua divisão corporal. Mesmo sendo os cotovelos e os joelhos inimigos mortais! Por longo tempo, não agia. Tremia diante de uma tímida intenção de movimento. Tinha medo que os dedos a levassem para um lado, enquanto os cabelos cismassem em correr para outro. Sofria pelo esquartejamento imaginário e decidia abusar da inércia.

Certo dia, porém, tentando domar um tornozelo rebelde, caiu sobre uma poça de lama. Sua bochecha esquerda expulsou todas as gotas do buraco da calçada, fazendo-o encher-se de pele e dentes. Estirada sobre o concreto, a mulher ramificada teve uma idéia. Afinal, ela não mais podia viver equilibrando seus membros...

Com uma criança que passava em direção à escola, tirou seu destino no par ou ímpar. Roubou, pois já estava decidida. Queria que aquele homem não mais existisse. Para ela. E então, arrancou todas as suas partes desobedientes, colocando-as em um jardim da cidade. Viu que o estômago era o mais machucado e insistente, mas não voltou atrás. Em uma loja de esquina, comprou órgãos novos, serenos e educados. Os olhos foram os mais difíceis de achar. Até que, em baixo de um livro antigo, ela encontrou um par de vistas castanhas que lhe interessavam. Ao enfiá-las sob as pálpebras, pode perceber que estava mais bela – e inteira.

Saiu pra passear sob o sol amarelo. Nunca havia se sentido tão firme. Tão suave. Tão feliz. Entre os membros enterrados no jardim, nasceram flores que guardam o passado. A burrice. Células cegas.

Hoje, a mulher vive livre e caminha delicada até mesmo sobre cordas-bambas. Ao seu lado, um homem pelo qual vale a pena... continuar completa.

4 comentários:

Unknown disse...

olhos castanhos hein...
hehehe, tá bom, já entendi!
Bjo

Vô Gueminho disse...

olhos castanhos?
Tô no páreo!!

Santa Bijuteria disse...

Rapha, para mim as palavras tem poder. No seu blog, além de poderosas elas estão lindas.
Parabens.
Ah! Adorei a flor no cabelo.
Super beijo. Lucy (SP)

Lara Muniz disse...

Lela,
Nem comento mais as saudades. Mas é bom saber que as coisas estão bem - dá pra ler isso em você.
Um beijo, querida!