quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Pequeno diálogo que tive com Deus em uma estrada fria


- Olá, acabei de nascer e não sei para aonde ir.
- Não se preocupe, querida, suba aí. É só pegar carona. Eu giro e você observa, ok?
- Ok. Os tapas que recebi ainda ardem a pele. Maldita luva cirúrgica... Tem um gelo por aí?
- Fique a vontade, pegue ali na Groenlândia...
- Obrigada.
- De nada.
- Vou ficar aqui, no banco de trás, olhando a estrada pela janela. Quero minhas mãos no vidro e meus olhos vidrados.
- Tudo bem. Mas cuidado com as digitais. As marcas podem te fazer culpada. E depois, não adianta se apoiar em qualquer pérfida contrição.
- Sou mais prática. Eu uso um limpa-vidros, obrigada.
- O que vê?
- As árvores. Por que elas correm lá fora? Estão fugindo de quê?

- Dos seus sonhos.
- Estranho, achei que ainda não tivesse sonhado.
- Bastou nascer, meu bem. Seu tempo de vigília acabou. Agora, tudo é fantasia.
- Gosto de bailarinas e palhaços.
- Então ande na corda bamba.
- As montanhas se movimentam devagar. Elas têm medo?
- Não. O medo está em você. Estagnado em você.
- Na verdade, eu me sinto paralisada, fixada aqui sobre esse asfalto. Tudo tem atividade lá fora. E eu de mãos atadas...
- Suas mãos estão enrugadas, mocinha. Não percebeu que chove aqui dentro?
- Sim. Os trovões cansam meus ouvidos.
- Mas não há trovões...
- Já escutou dentro de mim?
- Você venceu.
- Bem, acho que vou descer. Cansei dessa monotonia. Quanto te devo?
- Seu arrependimento.
- Fique com o troco.
- Oba!
- Mas o que é isso? Estou fora do mundo e continuo inerte. As árvores não fogem mais, as montanhas estão corajosas, a grama do acostamento está dormindo. Onde está o vento? Onde está a chuva horizontal?
- Oi, querida... O que foi?
- Você voltou?
- Eu nunca fui. Aliás, nunca vou. Eu sempre estou.
- O que há de errado comigo? Eu desci do mundo e agora o vejo em movimento. E aqui fora, tudo está pendurado no infinito. Nada se mexe. Tinha tanta inveja das árvores e hoje percebo: como elas são lúgubres!
- Menina, você me faz rir. Ocupe seu espaço e pare de sugar o imaginário. Não há ação além de você mesma. Tudo começa e termina em você. Inclusive o mundo. Resolva isso.
- Mas eu já tenho vinte e cinco anos. Só queria viver.
- Beleza, adoro filosofar... Vinte e cinco anos: um diapasão indefinível... Afinal, o que são vinte e cinco anos? Apenas uma vela oca e plástica sobre um bolo enfeitado e um soturno número que cai sobre sua pele.
- A margarina só não é plástico por uma molécula, sabia?
- Tempo é história e a margarina não tem chama.
- Você me chama?
- Sim, suba aí!
- E meus vinte e cinco anos?
- Injete-os na veia.
- Ok. Mas quero fazer um pedido...
- Faça.
- Posso dirigir?
- Claro, fique a vontade. Sua carteira de habilitação é toda a sua burrice corrigida.
- Então, segure-se!

Medo das regras


Uma pausa
(...)
Um sopro
(...)
O ar já não me pertence
Volta a ser vento
Nunca inerte

E se ele passa
Eu me permito sempre
(...)
Respirar

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Resfriado


A mulher pendurou o passado no quintal
Nem vento nem sol puderam secá-lo
Ela, então, vestiu o passado ainda molhado
E agora vive resfriada

Guardanapos voadores


Estranho receber os momentos do dia em que me sinto partida. São como presentes repetidos, pais adotivos de sorrisos amarelos. Certas imagens me batem como martelo, me pregam no tempo. Eu me fixo em pontos coloridos, que expressam meu pensamento mais remoto, mais prosaico, mais desinteressante. E quando os pontos se unem, em um ato de salvação para mim mesma, descubro a dor de não saber esquecer e resolvo criar desejos profícuos. Não quero agora estar partida - decido. Reúna-me, vento que suspirou há pouco. Obrigada. Nada pode me fazer sangrar de fato. Tenho a verdade no peito, guardada como um guardanapo usado, sujo de batom de mãe. E se a verdade aqui está, a mentira não me machuca. Não posso mais fingir pra mim mesma. Não há nada. Tudo está calmo. O idílio e a tragédia plasmada se foram. Carrego agora a atualidade, que me leva a crer que sou feliz. Realmente sou. Estou. Trago a palavra comigo, em todos os seus sentidos. E as palavras, para mim, são presentes caros. Únicos. Não se repetem.