quinta-feira, 19 de junho de 2008

Árvores internas


:: A solidão é fria, mas, ainda assim, o calor continua fazendo parte do mundo. No meu peito, é só a primavera que ainda não chegou. ::

Tecidos

Em tanque de sangue e madeira
Lavei com sabão minhas certezas
De tanto esfregar, tanto e tanto
Ficaram elas desbotadas
O tecido frágil se desfez em partes
Fios soltos, furinhos, o todo
Não mais posso vestir minhas certezas
Hoje gastas de cloro, o gosto
E para não sair, ver vitrines
Nua, crua e despida
Uso, me enrolo, me aqueço

Em grosso casaco de dúvidas


Novelo de lã (Tecidos II)

Assim feito novelo de lã
Tenho vivido

A linha espera, se enrola
E tece oníricos vestidos
Entre agulhas pontudas
Moram no mundo os tecidos
Sofrem, padecem, enlouquecidos
Trespassados e enterrados
Saltam os pontos meninos
Ponto cruz ou ponto luz
Que pouco a pouco seduz
A incabível verdade
Quanto mais costuramos a dor
Mais rasgamos com a mão
De uma forma desajeitada e triste
Todos os cantos do coração
Deixo então exposta a funda ferida
Pois quanto mais me cubro
Mais me sinto despida

Assim feito novelo de lã
Tenho vivido

Tenho morrido

sábado, 7 de junho de 2008

Rimas de mim

Cada Lela
Paralela
Que me nivela
Deixa seqüela
Mas, então, revela
E rebela!
Dorida novela
E futura (presente?) tela
Cada vez mais bela...

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Poça mágica


Tinha a mulher o corpo dividido. Um braço, uma perna, o ventre, o pescoço e os ouvidos já haviam entendido que aquele homem não mais existia. Outro braço, outra perna, os ombros, a boca e os olhos insistiam em desenhar sua silhueta entre pensamentos contumazes. Andar pelas ruas não era tarefa fácil. Vez ou outra, a mulher tropeçava, desajeitada, em dúvidas e discórdias interiores. Caía. Voltava a ficar de pé, envergonhada e febril. Caía novamente e, cansada, colocava os cotovelos sobre os joelhos, sentada no meio-fio, reflexionando sobre sua divisão corporal. Mesmo sendo os cotovelos e os joelhos inimigos mortais! Por longo tempo, não agia. Tremia diante de uma tímida intenção de movimento. Tinha medo que os dedos a levassem para um lado, enquanto os cabelos cismassem em correr para outro. Sofria pelo esquartejamento imaginário e decidia abusar da inércia.

Certo dia, porém, tentando domar um tornozelo rebelde, caiu sobre uma poça de lama. Sua bochecha esquerda expulsou todas as gotas do buraco da calçada, fazendo-o encher-se de pele e dentes. Estirada sobre o concreto, a mulher ramificada teve uma idéia. Afinal, ela não mais podia viver equilibrando seus membros...

Com uma criança que passava em direção à escola, tirou seu destino no par ou ímpar. Roubou, pois já estava decidida. Queria que aquele homem não mais existisse. Para ela. E então, arrancou todas as suas partes desobedientes, colocando-as em um jardim da cidade. Viu que o estômago era o mais machucado e insistente, mas não voltou atrás. Em uma loja de esquina, comprou órgãos novos, serenos e educados. Os olhos foram os mais difíceis de achar. Até que, em baixo de um livro antigo, ela encontrou um par de vistas castanhas que lhe interessavam. Ao enfiá-las sob as pálpebras, pode perceber que estava mais bela – e inteira.

Saiu pra passear sob o sol amarelo. Nunca havia se sentido tão firme. Tão suave. Tão feliz. Entre os membros enterrados no jardim, nasceram flores que guardam o passado. A burrice. Células cegas.

Hoje, a mulher vive livre e caminha delicada até mesmo sobre cordas-bambas. Ao seu lado, um homem pelo qual vale a pena... continuar completa.

domingo, 1 de junho de 2008

Choveu!


A chuva que se pede aqui, neste planeta, não é, necessariamente, a chuva de águas. A chuva que se implora aqui, nesta prisão, é a chuva vicejante que tudo faz florescer. A chuva que se espera aqui, neste pequeno coração, é a chuva que carrega a dor e traz novo amor.

:: Para estrear minha estante de palavras, declaro meu amor antropofágico pelo homem-poeta-palhaço Lirinha. O show de ontem lavou meus olhos. Derramou tempestade nos meus pés. Me fez brotar. ::

Transfiguração

Descobri entre os cílios

Um pedaço de pele intocada
Um poro, uma beira desraizada
Mas não vazia, nem abandonada

Soube então da morada do amor

Um amor secreto, embusteiro
Tão perto dos olhos, luzeiro
E tão escondido primeiro

O afeto mostrou-se entre os pêlos
Que protegem a alma debruçada

E ali, espremido e vicejante
Corre verdadeiro e pulsante
Abrindo-se liberto num instante

Para encontrar entre carta e selos
A bela e nova eternidade esmiuçada